4 de dez. de 2010

Leituras que me doem...

     A minha dor eu sei resolver. Ainda que seja a custo alto, sei resolver. Pode ser com um calmante, um trabalho físico, um desabafo. Pode ser mexendo na horta, organizando as roupas do armário, limpando a casa, xingando Deus; eu sei resolver. Ainda que demore, resolvo.
     
     O que não sei resolver é a dor do outro. Fico mudo, meu braço sobra, minha mão falta, minha boca treme algum vento sem força.

     A dor do outro não se comunica. Não dá nem tira emprego. 



     A dor do outro me isola. Tento uma brecha para falar, mas sinto-me intruso, incômodo, solteiro. Como uma casa em reforma.


     Toda dor só é compreensível no idioma da dor. Quem está de fora não entende, não tem razão, não alcança sentido. A dor não busca conselhos; a dor busca a pele para colocar por cima, busca cicatrizar a ferrugem e a maresia.

     A dor do outro é pedalar com a respiração. Ela me desfalca, me devassa, me faz duvidar de que eu podia ter ouvido.

     A dor do outro é a minha dor mais pessoal, porque é indiferente à minha própria dor.

     A dor do outro é uma parada de ônibus sem ônibus por vir. Uma parada de ônibus para se sentar e não ir.

     A dor do outro fica no lugar da dor, não suporta um passo além do círculo de sua lembrança fixa.

     A dor do outro tem a altura de um grito que não é dado para não desperdiçar a dor.

     A dor do outro não ri, porque, séria, chega mais rápido ao seu fim.

     A dor do outro não se empresta, é dor de osso, dor que não se enxerga de dia e nem de noite.

     A dor do outro é neblina com a roupa presa nos galhos.

     A dor do outro é uma escada sem muretas, sem apoio. Uma escada desigual como a cintura ao dormir.

     A dor do outro me esconde, me segrega, me empurra com os cotovelos para onde eu não desejava voltar.

     A dor do outro me pede ajuda para não ajudar. É severa como uma verdade antes da morte, severa como uma mentira depois da morte.

     A dor do outro é banal, irrisória e tola para os que nunca mergulharam na dor.

     A dor do outro é hipocondríaca e carente aos que nunca enterraram os pés ao correr.

     A dor do outro é discreta, pois os sons não se encontram na pronúncia.

     A dor do outro tarda para responder uma ligação.

     A dor do outro parafusa uma lâmpada para quebrá-la.

     A dor do outro não usa agenda, não recorre ao diário; a dor do outro é escrita esquecida. Não se escreve na dor, escreve-se para manter distância dela.

     A dor do outro não encontra dentes para mastigar. É mastigada com a língua.

     A dor do outro não requer meteorologia; ela não se modifica.

     A dor do outro é caseira, pois sair de casa é levar a casa.

     A dor do outro é destelhada.

     A dor do outro é uma árvore ao avesso, uma alegria ao avesso, uma água que já estava na boca.

     A minha dor eu resolvo, a dor do outro não sei aonde colocar, onde me colocar. Faço como minha avó Elisa. Quando alguém recusava um abraço, ela pedia para devolvê-lo.

     Devolver o abraço é a dor do outro.






"Pássaros comem na mão" é uma das excelentes crônicas do livro "O Amor Esquece de Começar" de Fabrício Carpinejar. Editora Bertrand Brasil


Se pudesse, publicaria várias. Recomendo a leitura.

3 comentários:

  1. Obrigada pela dica, Taiana. Boa tarde, bom final de semana, beijos :)

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  2. Se eu pudesse expressar com palavras o que sinto às vezes, seria exatamente isso.
    Obrigada, Carpinejar!
    Obrigada, Taiana!
    =)

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  3. Tai,

    Lindo escrito.

    Li essa obra há um tempo.

    Na minha opinião, a melhor do Carpinejar.

    um beijo,

    Laion

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